SEMPRE
exposição individual de Sonia Navarro
texto da exposição Nacho Ruiz
7.11 __ 20.12.2024
© Bruno Lopes
SEMPRE
Não sei se existe uma lã portuguesa e uma lã espanhola. Sinto-me como o Saramago a olhar para os peixes na fronteira e a questionar-se, enquanto nadavam no Rio Douro de um lado para o outro da linha que apenas existe na nossa imaginação, se seriam portugueses ou espanhóis. Tudo se complica ainda mais quando sabemos que a ovelha merina chega à península na Idade Média oriunda de Marrocos e desde então que na Europa se multiplica em muitas variantes a partir duma classificação básica: brancas e pretas. Em Portugal há três espécies distintas, Beira Baixa, merina Branca e merina Preta. Mas na origem simplesmente existe a branca e a preta. Esta é a inquestionável perfeição de uma divisão. Não sei se existe uma lã espanhola e uma portuguesa, mas sei, que existe a lã branca e a preta.
A Sonia Navarro ao longo da sua carreira costura muitos tipos de tecidos, materiais que são revelantes na sua obra. Não vou falar de um médium totalmente esquecido, mas também não é fácil trabalhar o feltro sem pensar no Beuys. Então se falarmos de extremos, na obra da Sonia, há sempre uma diferença entre o esparto e os sintéticos. O esparto é trabalhado onde ele nasce, e nasce abundantemente em muitas regiões de Portugal e Espanha, e especificamente em Múrcia a região do sudeste espanhol onde a Sonia nasceu, e é um elemento necessário na paisagem. O esparto nesta zona é trabalhado por mulheres que produzem formas por vezes de uma forma mais antiga do que o edifício mais antigo deste antigo reino. Mas com os tecidos sintéticos não será diferente. Eles são petróleo, provêm do subsolo onde não há peixes a nadar de um lado para o outro, mas onde também não há fronteiras. Os tecidos sintéticos executam-se da mesma forma em todos lados e o processo de transformação em roupas é mecânico, usa-se um padrão para a distribuição de um modelo no mundo inteiro. Em teoria é tudo igual, por isso a Revolução Industrial, a sua neta a globalização e a sua tetraneta a Amazon teriam alcançado uma utopia de homogeneização. Seria tudo tão idêntico que era indiferente se um peixe fosse de um dos lados, e que a ovelha, pudesse ser branca ou preta, não importa.
A Sonia trabalha com os dois tipos de materiais com diferentes interpretações. De uma forma natural e honesta, ela tem-se aproximado do esparto trabalhando lado a lado com as mulheres que o transformam. As peças em pele sintética exprimem outra realidade, mas mantêm algo essencial nas formas que obteve das vanguardas e também da sua história, e as pernas chegam sempre ao chão. Estão sempre no sentido descendente, nunca um trabalho da Sonia poderá ser colocado de pernas para o ar.
Durante a tristeza do pós-guerra faltava quase tudo na Espanha de Franco, e o Portugal de Salazar foi o primeiro fornecedor de practicamente tudo através do estraperlo, que foi o nome que se deu em Espanha ao contrabando. Foi uma actividade que garantiu a sobrevivência de milhares de famílias em ambos os lados da fronteira sob o olhar atento de peixes sem memória. Aqui chegava de tudo, mas o que tinha mais procura era o café. Em Espanha nunca tomámos um bom café e sempre achei que o motivo era porque durante o pós-guerra o tiveram de aguar muito. Daquele tempo herdamos uma bebida horrenda, a lembrança de um café requentado, que alguns até gostavam, mas talvez por estarem habituados à miséria. Também existe a história do contrabando dos caramelos, que são a materialização da felicidade infantil e de tantas outras. Espanha não tinha condições de contrapor com a oferta de mercadorias, mas Portugal gostava muito de artigos em crochê. Lã de ovelhas merinas convertidas em tapetes confecionados por mulheres pobres, equilibravam a balança comercial clandestina, e cruzavam a fronteira perante os mesmos peixes, ou já seriam outros?
La frontera siempre. Sempre a fronteira.
A viagem dos objectos pode ser tão interessante como os objecto em si, até pode ser a razão da sua criação. A Sonia costura muitas vezes caminhos, e os seus quadros podem ser muitas vezes entendidos como mapas que marcam os caminhos das mulheres, aquelas que faziam crochê e as das máquinas de coser, elas têm vindo a construir cidades e o seu ponto aparece e desaparece ritmicamente. São peças construídas sobre a viagem dos materiais, das formas e dela própria, as obras são viagens. Um caminho é o oposto de uma fronteira. Não se cruza, tem de ser percorrido, ir sempre mais além, a fronteira pára e diz-nos não.
El camino siempre dice sí.
O caminho diz sempre sim.
Nacho Ruiz, Novembro 2024
Director e Co-Fundador da Galeria T20