E O TEMPO
A sociedade está estruturada através de narrativas, argumentos imateriais enquanto tal, que se traduzem em modos de viver, em relações, organizações e ideologias. Vivemos dentro dessas narrativas.
As narrativas das obras artísticas, retratam formas corporizadas de argumentos comunitários mais ou menos implícitos: assim como os objectos de cotidiano, seja um equipamento tecnológico, um programa de televisão ou uma marca que nos induz a certos comportamentos e promovem valores colectivos, visões globais do mundo. A fronteira entre a ficção e a informação - e que Liam Gillick questiona nos seus trabalhos, redistribui as duas noções a partir do conceito do ponto de vista social, revelam-se de múltiplas formas que apontam uma estética mundial construída sobre o estudo de sistemas de controle ideológico.
Em PRODUÇÃO (RE)PRODUÇÃO, Martim Brion não expõe um “happy end” de um processo, mas sim um espaço de produção onde o visitante dispõe das ferramentas do artista para uma montagem visual livre, um cenário de pesquisa em tempo real e de (re)produção imediata, o espectador constrói a narrativa ao ritmo do seu olhar, e da imagem que projecta no seu subconsciente.
Reproduzir o já produzido, é uma tarefa extraordinária.
Não partir novamente do zero, nem do conhecimento acumulado de uma linguagem artística mas sim selecionar e interpretar, servir-se e partilhar. Martim Brion, mediante pequenas esculturas de parede e fotográficas de diversos formatos - materiais que nos remetem a uma arte conceptual dos anos 60, apresenta uma mobilidade narrativa descodificada, reinventada e de inevitável interpretação alternativa, como um inconsciente que tenta escapar à fatalidade da história, uma inversão do discurso colectivo numa ferramenta singular.
Neste espaço expositivo de análoga semelhança a um contentor de instrumentos visuais, compete ao espectador produzir relações com o mundo, e materializar de uma ou outra forma a relação com o espaço, acrescentando tempo.
Que perda seria a nossa, se não tivéssemos conhecido o nascimento?
...quem não provou o desejo da vida.
Não nascido, impessoal, não pode sentir carência.
Lucretius
Como artistas, produzimos trabalho. O que se entende por produção tem vindo a mudar com o tempo, assim como os métodos de fazer arte, a própria palavra, produção, que vem do latim, producere – acto ou efeito de produzir, deixou de significar algo artesanal para passar mais frequentemente a significar um processo industrial que tem métodos de produção bem planeados e definidos. A arte mudou em conformidade. Novos meios de produção foram assim acrescentados às ferramentas disponíveis para a criação, os do passado ainda presentes, embora algumas técnicas se estejam a tornar cada vez mais raras ou menos populares e assim a desaparecer da prática artística dominante. Por vezes com um impacto negativo quando esta é uma parte central desta prática, como por exemplo, o desenho tradicional. Mas, no geral, poder-se-ia argumentar, os novos métodos expandiram a possibilidade de criação. Será que estas novas possibilidades de criação valem esta expansão dos métodos de produção? Como com qualquer mudança, alguns sim e outros não. Até Sewell, concordaria que existe qualidade na arte contemporânea, na sua maioria tolices, mas como com tudo, o tempo é o grande crítico e seleccionador. Como será definida/apreciada esta arte daqui a cem anos, é impossível dizer. A única possibilidade é continuar a fazê-la o melhor possível. Uma componente importante desta prática é a repetição (mecânica), quanto mais se pinta, esculpe ou se lê, mais se melhora a capacidade de executar o referido acto, e isto aliado a inúmeros outros factores é a chave para alguém se tornar num artista com a sua própria abordagem individual. Evita-se dizer única, pois algo único é algo quase impossível de atingir, e mais uma vez, o passar do tempo precisa de ser tido em conta neste processo. Tudo isto está ligado à liberdade – à liberdade de criação, e à de viver, mas este tópico deixá-lo-emos com o fantoche de von Klist.
A produção deriva da criação, é preciso ter uma ideia para se poder criar algo, uma vez formada essa ideia, é preciso chegar a um método/técnica para a colocar em existência. Outra parte interessante deste processo é onde esta ideia está. Será que existe na cabeça de alguém, ou estará escrita algures, mesmo que num papel desconhecido ou não acessível, ou pode mesmo existir algures no éter? É ainda algo misterioso de onde vêm estas ideias, mas claramente elas não brotam do nada, elas formam-se a partir de uma confluência de influências, da vida de alguém, do estudo empírico, da dedução lógica, e assim por diante. A criação está também limitada à nossa capacidade sensorial, o dia em que poderemos ter acesso a diferentes sentidos, a nossa produção criativa assumirá uma forma diferente. Estamos envolvidos no nosso próprio ciclo social e civilizacional. O ser humano recebe a maior parte da sua influência do que conhece, e o que conhece melhor é a si próprio e aos seus. Assim, a arte é o que está mais próximo da criação natural com um humano como seu impulsionador, está a visar o trabalho dos deuses em termos humanos, embora nunca atinja nível de criação do mundo natural, pois é apenas a visão, o filtro pessoal, de um indivíduo que é uma partícula muito pequena num espaço muito mais amplo. Esta visão filtrada, no entanto, tem sempre mais qualidade quando provém de uma grande quantidade de influências ou inputs e não apenas de alguns. Este processo é como o plano de Schlieffen, é trabalhado e retocado inúmeras vezes e uma vez em acção é muito difícil de parar, mesmo quando o seu resultado final não é satisfatório. Há um elevado nível de atrito e perca neste processo, como há numa vida não tecnológica, uma vida pré-moderna. Será que este processo tem mudado com o tempo? Provavelmente sim, pois hoje é mais fácil chegar a uma ideia suficientemente convincente e ser capaz de encontrar um método de execução para a mesma a partir dos numerosos métodos de produção agora disponíveis. No entanto, isto não desconta muitas destas ideias como meros fait divers. O que significa que este processo no seu cerne, é ainda pré-moderno tal como nós enquanto seres humanos. Este processo, requer constante repetição física, física e intelectual, requer um constante estado de alerta e de estar imbuído na sociedade e nas suas opiniões, desde as mais lúridas até às mais nobres e uma elevada taxa de fracasso. O que nunca foi pode vir a ser e o que foi ou é, pode deixar de o ser. É um jogo constante de produção e re-produção, tal e qual nós próprios.
Esta exposição na Galeria Nave, é a fruição de tudo isto em três partes, Perspective Series, Colourscapes e Visions of the Future.
Perspective Series - são abordagens visuais geométricas, cubos com diferentes padrões de forma e cor. São superfícies diferentes com ligeiras variações. Como as perspectivas progridem e mudam ao longo de um caminho geográfico e quanto mais ao longo deste caminho, mais as perspectivas irão divergir. No entanto, todas provêm da mesma base, a perspectiva humana sobre a forma.
Colourscapes - são como que um jogo de criança de colorir imagens. Os livros de colorir abundam na infância, mas será que definham a criatividade da criança? Eu diria que não, estes ensinam antes, que a criatividade ou o processo de criação é sempre construído sobre uma fundação. As paisagens coloridas visualizam esta construção incremental, a necessidade de ter uma base sólida para deixar a imaginação livre e chegar depois a uma expressão final. Uma expressão com qualidade, que é informada e é intelectualmente honesta. Este alicerce precisa de ser tomado, mas não utilizado como sendo apenas nosso. É apropriado e trabalhado, tornando-se em algo mais do que era no início. Somamos as partes para chegar a algo mais.
Visions of the Future – todos queremos saber o que está para vir, qual é o próximo grande investimento, quem vai ganhar a guerra, o jogo, etc. É o desejo de uma impossibilidade. É também uma impossibilidade que torna a vida muito mais interessante. "Se se sabe exactamente o que se vai fazer, porquê fazê-lo?" diz Picasso e com razão. Com o a melhoria tecnológica há a sensação de que de alguma forma se é mais capaz de prever o futuro, há toda uma secção da sociedade obcecada com isto em todos os campos. Quando um grande evento tem lugar, as pessoas vasculham o trabalho daqueles que “previram” correctamente o referido evento. É uma aflição, ou melhor dito, uma necessidade, que temos tido desde tempos imemoriais, que advém da necessidade de saber, de ser capaz de se preparar, de estar seguro e de florescer. Actualmente na arte há um claro enfoque sobre isto, o exemplo mais permente é de todos parecerem saber onde fica a Avant Gard e com quem. Ainda que a Avant Gard seja algo observável apenas post factum. Picasso não era Picasso como nós agora o definimos, ele é apenas depois do facto. Iria ele por esse caminho? Sim, mas também muitos outros que não se tornaram Picasso, é o mesmo com tudo o resto. Nada está destinado a alguma coisa, nada está predestinado, tudo é fluido, o inesperado acontece e tudo muda a toda a hora. Será possível fazer previsões, sim é, e com grandes análises de dados e outras ferramentas desenvolvidas recentemente, existem cada vez melhores formas de modelar e projectar no futuro, será que isto nos vai aproximar do futuro? Não, não irá, uma vez que ainda estamos presos no presente, carregando connosco o passado.
Estes trabalhos fotográficos visam focar-se neste tema, e fornecer uma janela imaginária para o futuro, para um presente reinventado, que em última análise é o que são as previsões do futuro. Uma série de fotografias de várias vistas, apresentadas em vários formatos, a fim de criar vários painéis interligados de formas e cores.
Martim Brion