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FLOATING WORLDS
exposição individual de Henri Haake
texto da exposição Ana Sofia Castanho



19.09 __ 31.10.2024
© Bruno Lopes

Floating Worlds de Henri Haake — Memória e a perpétua terra de ninguém


 

 

“Floating Worlds” abre espaço a uma realidade fluida, à memória e ao desejo de regressar a ela, de a resgatar nas margens entre o sonho e o despertar. Passo a passo aqui, entre frames muito vívidos de um quotidiano que lhe ocupa o pensamento e o ser, viajamos no limite de qualquer coisa real que Haake grava para que não lhe escape por entre os dedos. Oferece-nos uma proximidade inesperada e uma profundidade cinematográfica a momentos fugazes, rasgos no espaço e no tempo, sob um enquadramento quase fotográfico com que revela, subtilmente, situações e passagens de vida que transcendem o óbvio — partilhando algo profundamente  intimista e que reconhecemos não pelo figurativo, mas pela captação sensorial do mundano que nos marca e, ainda assim, nos teima em fugir (como a areia que usa para texturar o que é seu). 

 

Se no ecossistema contemporâneo vivemos em zapping pela vida, ou numa qualquer imitação digital dela, o sentido de presente e de memória tornam-se difusos entre o que é, o que foi e o que poderá vir a ser; e Floating Worlds contraria precisamente isso,  a partir desta ‘lente interior’ que Haake aponta para enquadramentos improváveis, num zoom in a memórias pessoais e observações do quotidiano. Mora aqui uma exploração filosófica, uma Protopia talvez— explorando não de um futuro utópico perfeito ou de um passado distópico, mas de um presente em constante movimento que conta, e tem de contar sem anseios de mais, sem nostalgia também.

 

As telas de Haake, com as suas camadas texturizadas e tons subtis, fazem ecoar este sentido de memória e desejo tornados palpáveis em capturas quase fotográficas, onde o uso da água, do vapor e da neblina não é meramente estético, mas também conceptual. Em particular, no painel central do tríptico “The Fountain of Youth” e em obras como “Night Swim” e “Whirlpool”, a água torna-se uma metáfora recorrente para este estado fluido de ser. É, ao mesmo tempo, um conector e um separador; reflete e distorce. A água torna-se um meio que tanto revela como oculta—uma lente através da qual vemos o mundo, mas também um véu que o encobre. Esta dualidade é central para o conceito de “Floating Worlds”, onde a realidade nunca está totalmente formada — como ele, no seu ‘coming of age’.


 

Há uma qualidade onírica no figurativo que expõe. Um estado de realidade suspensa que permite um envolvimento mais profundo com o eu e o momento. Haake faz prevalecer um regresso a uma forma mais primitiva e não filtrada de ver o mundo, como aos olhos da criança que não deixam inteiramente de ser. Lembra-nos que as nossas perceções são intrinsecamente subjetivas, moldadas por jogos de luz e sombra, memória e imaginação (ou a emoção nela impressa). E se nos permitíssemos permanecer um pouco mais aqui? Ficar por um instante nessa ambiguidade, no não saber, no espaço mais intuitivo… só ficar? Esta dinâmica ganha vida no tríptico de“The Fountain of Youth”, uma meditação sobre os ciclos da existência e da perceção, onde o mundano e o mágico coexistem num delicado equilíbrio. O tríptico desenrola-se como um poema visual, onde cada painel representa uma narrativa distinta, mas interligada:

  • o esquerdo traz-nos a intimidade e o abraço, corpos que se fundem uns nos outros, um crescimento imerso em tons quentes, quase viscerais.

  • o central, “Fountain of Youth”, é o ponto focal do tríptico, onde Haake usa o tema da juventude eterna como metáfora para a fluidez da vida e da memória. As figuras, que emergem e submergem nas águas em cascata, ocupam um espaço liminar—entre a alegria e a sombra—refletindo sobre a natureza efémera do tempo e o nosso desejo de agarrar o inatingível, talvez sugerindo que até a alegria carrega a sombra da impermanência.

  • o direito sublinha uma atmosfera diferente, transcendente. Com referências ao “ascender das almas” de Bosch, torna-se uma meditação sobre visibilidade e invisibilidade, sobre o que é conhecido e o que está além da perceção. Este painel faz a transição do físico para o metafísico, onde a imagética se torna mais abstrata, representando uma fronteira entre mundos—entre o interior e o exterior, o corpóreo e o espiritual. O interior de um avião, nuvens e janelas jogam com as noções de confinamento ao chão e à realidade vs expansão, racionalizar vs voar. Levanta questões sobre a própria percepção de vida e pós-vida: estaremos a assistir a uma ascensão, uma partida ou um regresso?

 

A ausência de resposta reforça a liminaridade do estado de sonho—um espaço onde o consciente e o inconsciente se encontram, onde as memórias não são fixas, mas moldáveis, mudando com cada recordação. Como no exemplo de “Space Odyssey.” Aqui, Haake brinca com motivos cósmicos e da infância para refletir sobre as obsessões contemporâneas com a exploração e a fuga. A pintura não toca apenas uma referência à estética sci-fi; questiona o desejo de transcender os limites do terreno, e reconecta-nos com encantamento de pequenos. Ainda estamos a brincar, a imaginar, a inventar? Devíamos.


 

Estas pinturas não procuram documentar; procuram evocar. Ao caminhar pelo imenso chão de azulejos da Nave, cria-se aqui um diálogo entre o visível e o invisível, a recordação e o esquecimento, sugerindo que a nossa compreensão da realidade é moldada tanto pela ausência como pela presença. Nesse contínuo, a noção de um "mundo flutuante" torna-se uma metáfora pertinente. Inspirando-se no conceito japonês de Ukiyo, ou "imagens do mundo flutuante," Haake reimagina esta ideia num contexto contemporâneo, onde as memórias são tanto elusivas quanto omnipresentes, onde o que é sólido se torna efémero, e o que é esquecido ressurge com uma clareza apurada. Como em “Achilles Heel”—aquele vislumbre efémero, mas eterno, de uma sensualidade que ora passa, ora pode ressurgir nos sonhos como puro objeto de desejo. Esta fluidez, este movimento entre visibilidade e invisibilidade, é o que confere à sua obra uma qualidade quase espectral.


 

As obras de Haake tornam-se uma meditação sobre a perceção e a existência. A noção de Protopia que as sustenta sugere que não há uma verdade única a ser descoberta—nenhuma utopia ou distopia, pois—mas sim um desdobramento de verdades à vista, que não são nem totalmente realizadas nem completamente inacabadas. É neste espaço intermédio que os “Floating Worlds” de Haake se manifestam, convidando a habitar a incerteza, a encontrar beleza e significado não no que é fixo, mas no que é fluido. Um presente que persiste, uma perpétua  “terra de ninguém”, que oferece resistência suave ao ritmo urgente da vida que temos. Convida-nos, acima de tudo, a abrandar e a reconsiderar o valor do transitório, do fugaz e do inatingível. A viver o agora, sempre.

 

 

Ana Sofia Castanho

Lisboa, Setembro 2024

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