A CADEIRA (The Chair)
Arturo Comas
Texto de Ricardo Escarduça
5.05 __ 16.06.2023
© Bruno Lopes
No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra.
Uma pedra no meio do caminho, Carlos Drummond de Andrade
O significado não é estável e, sobretudo, imanente. Não é, portanto, uma proposição imaculada, a salvo de ferida, e menos é, antes de tudo, uma preposição insuspeita, isentada de dúvida. Não é o atributo incorpóreo que possamos agrupar com demais propriedades sensíveis, e, em tal composto, em tal ser não-nada, fixar o ser-em-si-mesmo de algo; uma substância subjacente e anterior a cada acidente, às modalidades em que um objecto é enquanto tal, em que ocorre sempre e em cada presença. Não é, do mesmo modo, o murmúrio ou o eco que, pela voz ou traço, possamos ampliar ou reflectir através da semelhança que, na ausência do modelo, o representa; uma afirmação ou discurso implicados na convenção das relações entre imagem e palavra em que nos enredamos quando tropeçamos no equívoco do elo representativo. Não é, sequer, o sentido detido por uma palavra, um sintagma ou uma oração que enunciamos, ou desenhamos, quando nos referimos a algo; uma estratégia sintática e semântica em que sustentamos o indicar, o designar, não obstante a dissemelhança abismal entre a fonética, ou a grafia, e o ser, as existências, os modos de presença que nomeamos.
Entretanto, como duvidar de que, pondo-se no nosso caminho nesta exposição, insistentes como anáforas no poema, estamos na presença de cadeiras? Ou melhor, como duvidar de que estamos, seguramente, perante uma cadeira específica – A Cadeira –, tal qual nos é indicado pelo sintagma nominativo que constitui o seu título, que a representa, que nos aponta o que vamos encontrar? Ou ainda, como duvidar de que estamos, presumivelmente, diante de representações múltiplas desta cadeira particular a que se refere o título da exposição, ainda que não a encontremos?
Com efeito, Arturo Comas traz-nos à presença uma série de objectos diferentes entre si, e de qualquer cadeira em cuja presença alguma vez tenhamos estado, sobre os quais, contudo, é-nos impossível declarar serem algo outro que não cadeiras. Singulares no seu modo próprio de ser e de vir à nossa presença. Basta-nos a sua família de semelhanças e, em cada um destes objectos, reconhecer, um, mais que um, ou todos os elementos que constituem o ser da cadeira, o que na cadeira subjaz e existe sempre, o ser cadeira que a cadeira tem em si. Eis aqui o assento, o encosto ali, além os apoios, os braços também. São, sem dúvida, cadeiras.
Em particular, reconhecemos por semelhança, em cada um destes elementos sensíveis, a massa, a dureza, a lisura, a forma, a cor, o brilho do assento, do encosto, dos apoios, dos braços da cadeira Gonçalo – ainda que que este modelo, a origem, a única, esteja em paradeiro incerto. Do mesmo modo que reconhecemos – se pudéssemos crer que conhecemos – a cadeira de van Gogh e a cadeira de Gauguin nas pinturas que, ostentando no título o indicador sentencioso, as representam, por mais geometricamente distorcidas e materialmente inverosímeis que sejam perante o referente. Ou reconhecemos, numa cópia de entrada no dicionário e num diagrama para montagem expositiva, uma qualquer cadeira que tais pedaços de papel assinados por Joseph Kosuth representam, e onde nenhuma cadeira está.
E, no entanto, não estamos, manifestamente, na presença de cadeiras diversas. Nem mesmo estamos diante de representações de qualquer cadeira. E, em particular, do modelo primevo da cadeira Gonçalo, por mais ou por menos semelhantes que lhe sejam estes objectos. Evidentemente, a excentricidade da repartição e organização no espaço das suas partes bloqueia a serventia que atribuímos à ideia de cadeira, a partir da qual ela se distingue, vem à nossa presença, e é cadeira. Seria a cadeira. E, tão ou mais excêntricos no arranjo das suas partes, tão ou mais impeditivos de uso segundo essa ideia, são aquele lance de traços que a mão desenha, aquele lance de sons que nos sai da garganta, com que nomeamos e, precipitadamente, falamos da ideia de cadeira, e desta exposição.
Nada está de qualquer cadeira em A Cadeira, do mesmo modo que nada está de cachimbo numa pintura e numa palavra, ou num sintagma que, além do mais, nos diz que nada daquele está em todos estes. Operando através do insólito, do absurdo, do instável que encontramos como denominador no seu corpo de trabalho, Arturo Comas conduz-nos para um campo movediço entre signo e significado, substância e acidente, modelo e representação, que corrói as relações correntes entre as palavras e as coisas, entre as palavras e as imagens. Que alvoroça o dispositivo epistemológico manobrado por uma criatura privilegiada que traça os limites do mundo.
Tal qual uma pedra no caminho, que não esquecemos ter-se apresentado no nosso caminho, sentimos um prazer neste desconcerto, há um consolo neste desconsolo que desmorona as estruturas e redes de saber que nos são familiares nas coisas, nas imagens, nas palavras a que nos afeiçoamos ou subordinamos. Se estamos em A Cadeira enquanto contempladores dóceis, aceitando uma barreira, uma separação, entre nós e estes objectos, procurando em vão na estrutura de saber dos nossos modos de ver, de falar, de mover, Arturo Comas convidar-nos-á, talvez, à porta de saída, e convidar-nos-á a entrar novamente; porém, a participar enquanto actores de um círculo mágico, no qual tomamos posse das nossas faculdades e potenciais.
É necessário um teatro sem espectadores, diz-nos Rancière. Em A Cadeira, são tanto as convenções de sentido detido pela palavra como os discursos da representação visual que Arturo Comas boicota, mostrando-nos que o significado emerge na experiência em si. Olhar não é ver; é necessário compreendermos a rede que modela e orienta o olhar, o dizer, o mover – a cadeira enquanto lugar da autoridade; a cadeira enquanto lugar do réu; ou, depois de todos os simbolismos, a cadeira enquanto quotidiano da produção e consumo em massa – e pormo-nos em acção, transformarmos essa relação de posições, anularmos essa separação entre presença e o saber da sua verdade.
É no seio da nossa inseparabilidade do mundo que estes objectos deixam de ser alguma cadeira, alguma representação, e, simultaneamente, deixam de o não ser. Pois, perante o seu carácter indeterminado, que nos liberta a imaginação para o ilimitado, o seu ser supera o ser-que-é, e é alternado pela dádiva do ser, o ser-que-se-dá no seu estar-aí, o ser que acontece enquanto desvelamento de uma ausência contida na presença, do que está presente e oculto, e que, em cada ocorrência, é possibilidade de constituição da sua subjectividade. A verdade da subjectividade não está na proposição que a vela; é, afinal, a proposição que está na verdade do subjectivo que acontece em si.
A Cadeira não objectifica. Não nos fixa o que é, o que representa, como nomear, como conhecer. Propõe-nos que nos lancemos in situ e in actu, no interior da inseparabilidade, num espaço de performatividade e pensamento, no acontecimento da revelação, onde tudo muda a cada lance, onde tudo é movimento, como nos diz Heraclito, dando-nos a liberdade desse encargo.
Ricardo Escarduça
Maio, 2023